2021: a teimosia de existir
2021 vai custar a terminar. Dentro de mim, digo. Ainda estou assimilando 2021. Tudo o que podia ser e não foi. Principalmente tudo o que foi e NÃO podia ser. O país dos absurdos. Tantas mortes, tanto desespero, tanta falta de abrigo e pão. Tanta palavra ruim a nos machucar, tanta falta de futuro. Também teve os primeiros gritos de revolta, num movimento ainda contido e medroso. E teve também alívio pela vacinação e episódios de uma alegria desvairada. Engraçado, mesmo com tudo ruindo achamos motivo pra rir. Nós brasileires temos talento para a tragicomédia.
Fico tentando entender o que nos move. E lembro de um vídeo da professora e youtuber Rita von Hunty, do Tempero Drag: a esperança é revolucionária, a desesperança não. Da DESesperança surge o desejo de voltar a um passado inventado, que nunca existiu. Quando a DESesperança toma conta, o ódio cresce num povo.
Mas de onde tirar Esperança?
Pra variar lembro de Drummond: “não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida, não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins. O tempo é minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente”. Ele recusa as saídas individuais, ou mesmo religiosas e místicas, as mais comuns e tentadoras por sinal. Ele quer que a esperança venha da realidade. Eu também.
Em seu novo livro (deixo abaixo a referência), Eliane Brum diz da esperança superestimada. Aquela esperança vendida como mercadoria. E da positividade como forma obrigatória de viver (e que inunda as nossas redes sociais). Somos, conscientes ou não disso, loucos consumidores desse produto.
Perdeu tudo nas chuvas? “Esperança”! O filho foi assassinado pela polícia? “Deus sabe o que faz”. A mãe morreu de Covid e da falta de vacinas? “Tava na hora dela”. Você se mata no trabalho e na criação dos filhos, sozinha? "Ora, a felicidade vem a partir de sua transformação interior”!
Sei que coloquei muita coisa junta aí. Porque no dia a dia mesclamos as saídas "fáceis" com certo fatalismo religioso. Acho que “deus quis assim” é uma das frases que mais ouvimos este ano. As pessoas não falam por mal. Acho que falam pra consolar os outros e pra se consolar também.
Porém a verdade é que a esperança consumida como produto (venha de onde for) pode ser tão paralisante quanto a extrema descrença.
Em 2021 percebi que minha esperança é dura e teimosa. O problema é que teimo em acreditar na capacidade humana de criar e transformar sua realidade. Fico procurando nas artes, na poesia, na História e nas pequenas histórias cotidianas deste Brasil, os tantos caminhos que nossa espécie pode percorrer. São muitos e nenhum está fechado, ainda. Tudo pode acontecer, do pior ao melhor. Fazemos muita merda mas também muita beleza.
Mas tem uns e outros que não confio, lógico. Não acredito nos seres humanos bilionários, os grandes capitalistas que mandam no mundo e comandam os países. Eles são os culpados, ou herdeiros dos culpados, de quase todo o desastre humanitário e ambiental em que vivemos. Mas acredito nos seres humanos aqui de baixo, do duro mundo real. Somente a partir de nós o futuro pode ser criado.
Sou sonhadora? Teimosa? Louca? É possível.
Na verdade, talvez o que nos mova seja a pura teimosia. Basta olhar uma tarde de sábado, as ruas cheias, pessoas rindo, outras sérias, jovens conversando, mães levando criança pela mão, ônibus cheios, filas da lotérica, barracas e casas de papelão. Teimamos em continuar, mesmo com a vida tão difícil.
Há algumas décadas, houve um diplomata brasileiro que disse: “Índios, no Brasil? Não existe mais”. Nossos povos originários, no entanto, teimaram em existir e são hoje a chave para reaprendermos a lidar com um mundo em colapso. Teimoso também foi o povo negro deste país: já quiseram que saíssem daqui, já quiseram apagar sua cor e seus traços da nossa aparência e da nossa cultura. Quiseram nos branquear. Teimosa, a negritude sobreviveu e criou ritmos, comidas, danças, comunidades, os jeitos de existir que fazem o Brasil. Tudo teimosia.
E podemos estender isso para todo o Sul global, tão espoliado e explorado. Teimamos em existir, do nosso jeito, com nossas dores, alegrias e riquezas ameaçadas. A maioria dos explorados do mundo sobrevive quando não era pra ter sobrevivido. E faz melhor: produz arte, ciência, ri, diz palavra, quando era pra ter ficado quieto. Melhor mesmo seria não precisar ser tão teimosos, contar com o mundo a nosso favor. Um dia será assim?
Em 2021 a teimosia me saltou aos olhos. Aqui no Brasil quiseram nos matar. Em muitos dias fomos trabalhar como saindo pro abate. Foi uma guerra e nela perdemos muites (a guerra que amainou mas não terminou). Quiseram que esquecêssemos nossos mortos. Fizemos o oposto. Também quiseram que não nos vacinássemos, mas nos vacinamos. Incentivaram nosso egoísmo, mas quanta solidariedade temos visto nesses tempos de fome e desabrigo. Querem porque querem destruir nosso futuro. Não queremos deixar.
2022 e os anos seguintes serão longos. Mas somos insistentes, teimosos, cabeças-duras. Daí vem a esperança.
“Amar e mudar as coisas me interessa mais”
("Alucinação", música de Belchior)
Recomendações:
- Episódio do Tempero Drag: "Esperança e Imaginação Política"
- Livro da Eliane Brum: "Banzeiro Òkòtó – Um Viagem à Amazônia Centro do Mundo"
Foto e reportagem da capa do blog: Estado de Minas/AP, 16/03/21.
Verdades que teimam em ser verdades com suas longas e incansáveis pernas...
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