Thiago de Mello não sabia
Thiago de Mello não sabia, mas suas palavras foram parceiras de um casal que começava sua história há algumas décadas. Em 14/01, dia do falecimento do poeta amazonese, aos 95 anos, fui em busca de dois livros dele que tenho aqui: “Faz escuro mas eu canto” e “Poesia comprometida com a minha e a tua vida”. Os exemplares têm pouco mais que minha idade. Possuem marcas de tombos, remendos para feridas. Algumas páginas ganharam leves manchas de café. São de meu pai e minha mãe. Confesso que os confisquei há anos.
Um dos livros é uma edição de 1978, quando esse casal que me gerou ainda nem havia se casado. Eles estavam no meio do namoro, no meio da ditadura militar. Movimentos culturais, musicais e políticos pipocavam pelo País, burlando a censura. Com quase trinta anos, meus pais passavam por aquele turbilhão de ansiedade que nos ataca nessa idade.
No caso deles, era um “quase 30” de pobres, cheio de apertos, dúvidas, sonhos pouco prováveis. Os dois trabalhavam, ganhavam pouco e queriam, às vezes, se casar. Vestígios dessas duas pessoas que não conheci, mas imagino, estão nos livros de Thiago de Mello que releio agora.
Não é figura de linguagem: os livros guardam as letras dos meus “velhos” e alguns escritos deles. Na contra capa de um, vejo a caligrafia jovem e redonda de minha mãe. Nas páginas finais, a letra garranchada de meu pai – originalmente canhoto, ele foi obrigado na escola do interior a escrever com a mão direita. Pelas mensagens, percebo que as palavras do maior poeta do Norte devem ter sido especiais para eles. Faróis em tempos difíceis.
Os poemas mais luminosos estão em “Faz escuro mas eu canto”, sua obra mais aplaudida, lançada em 1965, após o golpe militar. Vem desse livro os belíssimos “Os Estatutos do Homem”, “Madrugada camponesa”, "A vida verdadeira" e “O pão de cada dia”.
Naquele tempo, Thiago de Mello já era escritor e jornalista reconhecido. Trabalhava como adido cultural no Chile quando houve o golpe no Brasil. Foi amigo de Pablo Neruda e parte da grande geração de escritores latinos ao lado de Mario Benedetti, García Márquez, Jorge Luis Borges, Eduardo Galeano etc. Em 1965, de volta ao Brasil, foi preso junto com Carlos Heitor Cony e Glauber Rocha, numa manifestação no Rio. Solto, foi acolhido de vez no Chile.
A apresentação de Neruda, na edição de "Faz escuro mas eu canto", diz assim:
"O tempo e Thiago de Mello trabalham em sentido contrário. O tempo desgasta e prossegue. Thiago de Mello nos aumenta, nos agrega, nos faz florescer e depois se vai, tem outros afazeres. O tempo se adere à nossa pele para nos gastar. Thiago passa por nossas almas para nos convidar a viver." (trecho traduzido a quatro mãos com meu pai Lucas Furtado)
De fato, Thiago de Mello irradiava amor e esperança na força do povo explorado do continente. Apesar do revés no Brasil, aquela geração sonhava em libertar a América inteira. No livro, o otimismo vem das coisas simples da vida, da amizade, da infância no Amazonas, do pão dividido, do trabalho que dá frutos. “Faz escuro mas eu canto porque a manhã vai chegar”, o poeta cantava.
Mas eita manhã que demorou a chegar (para alguns, e nunca para todos). Em setembro de 1973, “um incêndio monstruoso lavrou na cordilheira dos Andes”, foram as palavras de Thiago. O golpe militar no Chile depôs e matou o presidente eleito Salvador Allende. Estava enterrada a maior esperança de chegada ao socialismo por meio de reformas graduais e sem uso de armas (a chamada "via chilena").
Então a obra “Poesia comprometida com a minha e a tua vida” é bem diferente da primeira que citei. Escrita em 1975, no novo exílio na Europa, Thiago de Mello está revoltado e triste. Teve que levar seus cabelos exuberantes para o outro lado do Atlântico, para longe do calor do Amazonas, “sua pátria da Água”. Viu a repressão brutal da ditadura de Pinochet, os fuzilamentos, as prisões e desaparecimentos de milhares nas periferias, campos e fábricas chilenos. Isso aparece em seus versos.
Na parte final dessa sua obra dolorida, o poeta que conhecemos começa a despontar - como se, pela escrita, ele emergisse de um longo mergulho no inferno. Com o tempo, os incêndios por aqui foram amainando, outros começaram, ferozes. Após a ditadura no Brasil, Thiago voltou a morar e a escrever na Amazônia e para ela. Em prosa e verso, foi defensor da floresta e seus povos até os últimos dias de vida.
Os poemas mais lidos (e lindos) do escritor refletem um período muito especial do Brasil e da América Latina. Lendo-os, vivencio como nunca os sentimentos que moveram aquela geração incrível, criativa, romântica, de certa forma ingênua... e que foi muito, muito machucada. No meu caso, ler Thiago de Mello é também tocar o mundo particular dos meus pais quando eu ainda nem existia.
No Natal de 1978, as mãos de minha futura mãe copiaram para meu futuro pai os seguintes versos do poeta:
“Tens de guardar
dia a dia, mesmo doendo,
o amor no teu coração.
Sabendo que o amor só cresce
quando se reparte por inteiro,
e se deixa de crescer
de ser amor também deixa.”
Os Estatutos do Homem (Ato Institucional Permanente) - completo e maravilhoso
Exposição 95 anos de Thiago de Mello (Prefeitura de Manaus)
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