História de uma gata

É tão bom ficar nesse lugar quentinho vendo o menino jogar. Essa caixa preta faz um barulho e estar perto dele me deixa feliz. Também fico feliz quando ele me pega no colo como eles fazem também com humanos pequenos. Também gosto quando a grandona chega porque põe a comida gostosa e novinha pra mim. Com eles dois a casa se agita, o dia começa mesmo já sendo quase noite. Daí é mariantonia e toninha pra lá e pra cá, o que quer que isso signifique. Acho que sou eu.

Depois tem o aconchego no lugar quentinho e peludo que eles deitam pra dormir. O pequeno me deita com ele, mas logo saio. É que eu gosto de olhar o céu da janela, de madrugada, quando posso ouvir melhor o que me interessa mais: bichinhos pequenos, vozes abafadas, cada noite algo a ouvir e a cheirar. Às vezes encontro com os iguais a mim. E converso com uma que tem um cheiro que parece o início de tudo.

Mas ultimamente não estou tão animada pra sair, sinto um enjôo estranho e perdi aquela vontade de comer as bolinhas crocantes. Pareço jovem mas estou cansada. A grandona também está, mexe pra cima e pra baixo, joga aquela coisa molhada nas coisas e no chão, faz umas comidas cheirosas que nunca quis provar, não sei porque. É comida deles, talvez não faça bem pra mim. Gosto de me sentir bem. De deitar nos escuros da casa e no quarto dos fundos. Não gosto de ninguém xeretando o meu lugar. Pra brincar é só com aquele gatão do bigode preto. Ele me deixa feliz.

Queria parar de vomitar. Ela não percebe que não estou bem? Tem o pequeno, além de mim. O pequeno é a alegria, o barulho, a diversão. Ela, a dona do pedaço de mundo reservado pra mim. Parece que tem muito mais lá fora mas eu nunca fui ver.
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Ela era uma parte de nós e de nossa vida. Parte do trabalho, da atenção, dos xingos e do amor. Era família. Ela andava quieta, nos últimos dias. Não ficava tanto atrás de mim e nem parava mais em frente ao prato de ração. Ela fazia isso antes de comer. Ficava um tempão olhando pro prato antes de atacar. Amava aquilo que era só dela. Seu cantinho na cama, no armário e ao lado do videogame. Sua cama no quarto do Eric (sua porque só ela deitava lá).

Maria Antônia era uma de nós, com seus sentimentos, seu tédio, seu cansaço, pequenas alegrias, preguiça e conforto de gata amada. Era uma lady. Sabíamos quando ficava com raiva. Isso acontecia quando dávamos banho ou levávamos pra vacinar. A chateação chispava em seus olhos bravos como num cartoon. Apesar da correria do dia a dia, eu a sentia. Sentia seu amor ao me cheirar antes de dormir. Sentia sua ansiedade quando não punha ração imediatamente após colocar os pés dentro de casa, rsrs. Sentia seu pelo me roçar enquanto eu passava sem dar atenção, sempre com algo a fazer pela casa.

Enquanto me preparava pra dormir, ficava feliz de ver Maria Antônia correndo pelo corredor, pela casa, nesse relógio biológico de gato que quase sempre é o oposto do nosso, principalmente nas noites calorentas. E quando abria o olho à noite e a via na janela, imóvel, concentradíssima naquilo que nunca vamos perceber. Apesar das noitadas ela sabia a hora de acordar. Uma sábia que ficava me olhando fixamente depois de meia hora de despertadores tocando. Ela sabia que era esse o sinal. De sair da cama, comer, espreguiçar, ir pra frente da porta que em seguida eu iria abrir.

Senti sua tristeza, seu se perder aos poucos, mas demorei a fazer algo porque achei que nunca iria perdê-la. Gatos não são imortais? Não têm sete vidas? Não caem do muro e sobrevivem? Ela ia com a gente pra Espanha, estava previsto de ela morrer quando Eric tivesse 20 anos e eu 48. Estava tudo previsto e com ela.
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Outro dia contei pra minha mãe que não estou bem, tem algo errado em mim. Ela chorou porque sentiu que era grave. Fiquei feliz porque ela gosta de mim ainda, apesar de vivermos em caixas grandes diferentes.

A grandona anda preocupada comigo também. Percebeu que não brinco tanto e que estou dorminhoca. Fez um molho pra eu comer, fez muito carinho em mim, me deu outras bolinhas diferentes. Mas só de cheirar me dava enjoo de novo. Até que um dia ela me levou pra fora naquela caixa com cor estranha e que detesto. Eu sabia que não ia sair coisa boa dali...

(Maria Antônia foi nossa primeira gatinha que morreu em novembro de 2019, de uma doença grave causada por um vírus que contagia felinos. Há vacina para prevenir, mas não era muito comum quando a adotamos...)

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