Racismo: um pouco de história e reflexões

O Brasil tem muitos mundos. Em um deles, muito vasto, a morte ronda na saída da escola, dentro de casa, no rolê com os amigos, no baile funk. A morte ou a prisão. Morrer é tão possível para um jovem negro no Brasil quanto é possível para um filho da classe média alta ganhar um carro quando entra pra faculdade.

Por que um brasileiro negro pode ser expulso de shopping, acusado de roubo, seguido nas lojas, tomar batida e apanhar da polícia, ser mal-tratado nos condomínios de luxo, ser morto e isso não sensibilizar a opinião pública? E os hipócritas que nos governam afirmam que não há racismo no País. Só porque aqui não teve uma Ku Klux Klan ou apartheid legal?

Ocorre que aqui não foi preciso. O estado e as elites, ao não darem aos ex-escravos ou seus descendentes brasileiros nenhuma forma de reparação e direito à terra, garantiram um sistema de apartheid sócio-racial muito marcante. Ao mesmo tempo, incentivaram imigrantes europeus (pobres, mas brancos) a vir para cá, com terras para cultivo e estímulo econômico. Sem ter como ganhar a vida no campo, milhões de ex-escravizados vieram aos centros urbanos. Já nas primeiras décadas da República, governos demoliram casas e cortiços negros nas áreas centrais das cidades. Foi quando começaram a se formar as primeiras favelas.

Então, já que o projeto de embranquecimento não deu certo, a alternativa foi tentar esconder as pessoas pretas de tudo o quanto é jeito. Até hoje é assim. As elites cheias de preconceito e estarrecidas com a cultura negra, não querem vê-los toda hora, mas aceitam sua presença em lugares reservados pra eles: longe dos bairros nobres e shoppings de luxo, e desde que em posições subalternas porque, afinal, mão de obra barata é sempre vem vinda.

Quadrinho de Fernando Assis (cujo trabalho é incrível) - https://www.instagram.com/leandro_assis_ilustra/

Mais do que isso, já que era pra conviver com eles, que fossem caladinhos, sem expressão e sem opinião. A cultura negra era relegada a certos espaços e muitíssimo perseguida pela polícia e pela opinião pública. Assim foi com as rodas de samba, o candomblé e a umbanda, os primórdios do carnaval na Bahia, a capoeira, os bailes funks, os rolezinhos... Policiais desde sempre invadiram terreiros, prenderam sambistas e capoeiristas pelo crime de “vadiagem”. Se você não tinha emprego comprovado, o que era bem difícil no início do século XX, tinha muitas passagens pela cadeia.

Como é uma segregação que se junta ao preconceito de classe, pela aversão e medo que as elites têm dos mais pobres, é muito fácil a pessoa dizer que não é racista no Brasil. Manter o racismo escondido por trás do menosprezo aos pobres, por trás do discurso de combate ao crime e à violência.


De onde vem a esperança

Pensando nisso tudo, lembro de duas pessoas que eu atendia todo mês e que nunca vou esquecer: Firmino e Maria, dois velhinhos, casados, ele é aquele negro “retinto”, ela negra de tom de pele mais claro (já falei deles nesse post aqui). Todo mês chegavam juntos, levados pelo filho, infalivelmente no dia certo de receber a aposentadoria de um salário mínimo cada. Eram muito sorridentes e simples, e se mostravam tão agradecidos por eu estar atendendo-os!

Apesar de gostar de atendê-los, eu ficava meio triste também. Pensava em quanto nossa sociedade ensinou que eles deveriam ser humildes e muito educados, porque assim eram melhor aceitos. Muitas afro-brasileiros que atendi praticamente se desculpavam por estar ali ou por fazer algo errado. Muitas empregadas domésticas indo pagar contas para seus patrões são assim. Já houve vezes em que a pessoa não se aproximou do guichê, ficando distante, esperando minha permissão para se aproximar (são casos mais raros). Sempre rostos negros, mesmo que muitas vezes não se reconheçam como tal.

O que quero dizer é que há um padrão: em determinados ambientes, a subserviência é o esperado para pessoas negras e/ou pobres – as agências bancárias são exemplos de ambientes assim, muito opressores. Como Firmino e Maria, gerações inteiras foram ensinadas a se portar dessa forma, e ainda bem que nos mais jovens isso está mudando (e como essa mudança incomoda as elites e a classe média).

Lembro muito do filme com a Regina Casé, “Que horas ela volta?”, em que há o conflito entre a mãe, empregada doméstica há anos, e sua filha. O excelente “O Mordomo da Casa Branca” também mostra esse conflito de gerações, na consciência e na postura que surge no mundo a partir da década de 70 principalmente (nos EUA). Boa notícia, essa reação da negritude está cada vez mais forte no Brasil. Dessa vez as elites não conseguirão esconder.


Obs.: um dos podcasts que mais gosto é o “História Preta”, apresentado por Thiago André e produzido pelo estúdio B9. Tem muitos episódios lindos porque ele mistura relatos pessoais com História e entrevistas. Recomendo demais!

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