Entre livros e dentes
Na verdade, não era só uma livraria. Era papelaria, loja de brinquedos, presentes, artesanato e material escolar. Também não era só isso. A loja, espaçosa, atrativa, era nosso local de passeio, meu e do meu filho. Às vezes, sábado de manhã, o programa era ir à Conhecer da Rua Padre Eustáquio. Meu filho ficava olhando os brinquedos baratinhos e eu, os livros. Havia edições novas e usadas com preço ótimo, sempre dava pra encontrar uma pechincha. Mas em geral eu ficava só vendo as novidades, namorando livros, como se diz. Era bom.
Há uns anos, fuçando nas promoções, encontrei o lindíssimo e premiado “Nem tudo começa com um beijo”, de Jorge Araújo e Pedro Sousa Pereira, dois autores cabo-verdianos incríveis. A edição novinha me custou 7 reais – comprei no risco, sem conhecê-los, atraída pelo preço e pelas ilustrações lindas do Pedro Sousa. Hoje eu sei que a obra merece muito mais do que paguei.
Já para meu filho, a Conhecer era um lugar legal possível de se comprar brinquedos. É que a outra loja da rua, também tradicional e só de brinquedos, era bastante inacessível para nosso bolso. Por perto há outras lojinhas, mas nenhuma era como a Conhecer. Primeiro: a seção de brinquedos, pequena e num canto, dava tranquilidade para que a criança não sumisse. Além disso, a loja vendia um pouco de tudo, numa mistura de Leitura, Shopping Oi e Feira de Artesanato – jogos e brinquedos manuais e de marcas menos conhecidas ajudavam o preço a baixar. Não tinha aquele exagero das megalojas de brinquedos, que cansam os olhos e empobrecem a pessoa só de entrar. Eric adorava, e eu também.
Desde minha adolescência (anos 90), a Conhecer estava lá naquela esquina. Neste País com pouquíssimas livrarias por habitante e uma educação precária, o que manteve a loja por tanto tempo não foram os livros. Seu forte eram materiais escolares, uniformes e livros didáticos pra escolas particulares – num bairro de classe média, isso foi acertado.
Acontece que, desde o primeiro fechamento da cidade, pela pandemia, a Conhecer nunca mais reabriu. Ficamos esperando, na certeza que ia reabrir. “Deve ser por causa das aulas paradas e online”, pensávamos. Nenhum aviso ou recado na porta, nem placa de aluga-se.
Até que, dia desses, veio a sentença final: naquela esquina que era ponto de referência da região estreou uma linda clínica odontológica. Ramo de negócio, aliás, que está em franca expansão nestes tempos, pelo que tenho visto na cidade. Elas têm decorações muito brancas e envidraçadas, num visual asséptico, todo clean - não se adota mais aquelas horríveis placas com nome do dentista e registro no CRO. Esses novos consultórios parecem ser ligados a redes maiores de clínicas, talvez parte de conglomerados dentários mundiais que podem estar se formando, quem sabe.
Sem desdenhar da saúde bucal de ninguém, toda a situação me deixou meio triste. Aquele local de tão boas lembranças, de certa cultura, mesmo que paga, virou uma clínica. A única livraria de rua e laica que existia num raio de quilômetros, fenômeno raro fora do eixo Centro Sul de BH, foi substituída por um negócio útil, porém padronizado e sem vida.
É certo que sobram dentes a serem tratados em nossa população, mas também sobram, e como, mentes a serem cultivadas e tocadas por algo que vá além do nosso dia a dia de obrigações e cansaço (e, quando possível, tratamentos dentários). Num bairro tão vazio de espaços de lazer e cultura, era bom ter por perto uma Conhecer. Como vai fazer falta...
Uma parte interna da loja que fechou... Foto: Guia Padre Eustáquio |
Obs.: pelo que pesquisei, a Conhecer continua funcionando online e tem uma loja em Contagem.
Dica:
Nem tudo começa com um beijo foi lançado em 2005 (hoje só encontrado em sebos). É uma obra juvenil que conta a história de dois jovens, Fio Maravilha e Nuvem Maria, que se gostam mas pertencem a mundos distantes. Ele mora na Cave, ela mora no Sotão. A Cave, o subterrâneo da cidade, é a moradia do personagem principal e seus amigos (a história foi inspirada em crianças que moram nos esgotos de Luanda). O romance tem uma linguagem simples, criativa, e um enredo muito bonito.
Os dois autores de Cabo Verde, Jorge Araújo e Pedro Sousa Pereira (ilustrador), são grandes parceiros e sempre lançam livros juntos, como Cinco balas contra a América e outros.
Que pena, amiga! Aqui em Brasília também fechou uma livraria onde fazíamos os encontros do Leia Mulheres. E olha que era uma livraria pequena, combinada com um café gourmetizado, em plena Asa Sul...
ResponderExcluirAdorei ,Lívia!
ResponderExcluirComo você, eu também amava a livraria Conhecer. Ficava horas lendo as contra capas dos livros e muitas vezes comprava o que me encantava (aliás, sempre gostei de livrarias,Cafés, exposições...) .A livraria Conhecer era nossa,do nosso bairro Padre Eustáquio!
Doeu muito quando fechou e ainda dói. É mais uma triste consequência da pandemia!
Deus nos ajude e abençoe.
Parabéns, Lívia! É um prazer ler tudo que escreve!
Lívia, para minha surpresa (boa) , dia desses caminhando pelas imediações do meu bairro, me deparei com uma portinha com alguns livros expostos e resolvi entrar.
ResponderExcluirNão é que trem era (é) um belo de um sebo, em plena zona leste, mais precisamente no bairro Pompéia.
Puro êxtase!!