Luto e memória ou: o que será de nós
Hoje entendo que esses ritos funerários não são meras formalidades ou costumes religiosos. São fruto de uma necessidade elementar, muito íntima, de assimilar a morte com o apoio do grupo. São parte do processo de sobreviver às perdas.
Durante a pandemia, esses ritos coletivos de despedida se romperam, ou não existiram por motivos sanitários. Em pouco mais de um ano, perdemos 520 mil pessoas importantes (e cada dia perdemos mais). A maioria se foi sem visitas, sem abraços, sem homenagens e rituais. Um dia, de repente, não estavam mais. E além da saudade, da perda sem aviso, tivemos que enfrentar diariamente a negação dessas mortes, o escárnio com a dor.
É que temos uma parte do País que trata as mortes por Covid como enganos ou meros danos colaterais. São os que reviraram cemitérios, invadiram hospitais. Os que chutam cruzes, pisoteiam flores, questionam atestados de óbito. Deles ouvimos há mais de um ano: chega de "mimimi", chorar os mortos é coisa de fracos. Foram perdas necessárias, "fazer o quê"? Tudo pelo bem-estar da economia, por fim tão em frangalhos quanto nós.
Essa parte da população, que sempre existiu e existirá, vê apenas a si mesmo. Não importam professores, trabalhadoras domésticas, motoristas de ônibus, caixas de supermercado, entregadores, garis, filas de espera nas UTIs públicas e mortes sem ar e atendimento. Não importam idosos que eram arrimo e sustento moral de milhares de famílias. Para eles, somos apenas $$. É a parte do Brasil escravocrata – a mesma que aprisiona trabalhadoras domésticas durante a pandemia.
Quando é útil, os cínicos se preocupam com o povo, a fome, o desemprego. Aliás, antes da abolição, os escravistas argumentavam que não se poderia acabar com a escravidão porque negros e negras ficariam na miséria. Qualquer semelhança com o que ouvimos nesse último ano não é mera coincidência.
A nós, que estamos ainda sobrevivendo a esse morticínio anunciado, restou uma mágoa crescente. E esse luto guardado, ofendido tantas vezes, tem se expressado com força nas ruas e nos recentes protestos. É como se ele "precisasse" sair. Luta-se pela vida, mas também para que nossos mortos não sejam motivo de chacota e mentira. Não à toa, muitos cartazes nas manifestações dizem apenas “RESPEITO”.
O primeiro luto conjunto que vivemos acho que foi com a morte do ator Paulo Gustavo, cuja batalha contra o vírus todos acompanhavam pela mídia. Quando lembro da noite de aplausos a ele, em Niterói, eu me arrepio até hoje. De longe, milhões de brasileiros choraram por ele e por muitos outros. Foi uma noite de desabamentos.
E agora, nos grandes atos contra o governo, cada vez mais pessoas estão levando fotos, homenagens, cartazes, registrando pra história os nomes dos seus familiares, amigos, colegas de trabalho que se foram antes da hora (algumas dessas fotos eu coloco aqui). Em cidades menores, os dias de protestos têm sido ocasião de homenagear os moradores perdidos para a Covid e para o negacionismo. Aos poucos, ainda assustados, brasileiros sapiens buscam, no grupo, o apoio para assimilar tantas perdas e dar sentido a elas: que não tenham sido em vão.
SP, 19/6/21 - Foto: Mídia Ninja. |
Viçosa, MG, 3/7/21 - Foto: Mídia Ninja. |
O direito à memória e ao luto
Em sua história, o Estado brasileiro sempre foi exemplar em negar violências, dores e mortes que ele mesmo causou. Ocorreu com os povos nativos, dizimados desde os tempos da Colônia e agredidos durante a República (e que passam agora por um novo grande ataque no seu direito à terra); ocorreu com toda a herança da escravidão e a segregação racial que vigora até hoje; ocorreu com crimes cometidos durante a Ditadura Militar, nunca punidos e hoje saudados; ocorreu quando soldados do Exército atiraram 80 vezes num homem negro com sua família no carro (ops, confundiram com um bandido); ocorre diariamente quando a polícia mata um jovem, uma criança ou uma mulher grávida na favela.
No fundo, somos mestres em tirar ou minimizar o significado da morte.
Alguns dirão que isso é cultural, ou que somos assim. Eu não acho. Negar a dor e a violência, modificando a memória coletiva, é parte de um projeto de domínio aplicado com certo sucesso no Brasil. Diminuir, desqualificar, tornar invisível o discurso dos ofendidos tem dois objetivos: permite a impunidade dos culpados (quase sempre Estado, governos e parceiros destes); e, mais importante, permite que a violência cometida continue acontecendo sem que as vítimas consigam reagir ou tenham apoio social para isso.
Então não, o povo brasileiro não banaliza a morte. Na verdade, o que nunca nos foi permitido foi entender seu sentido, vivenciar o luto, nosso e dos outros, coletivamente, como nação. Não nos deixaram.
E de negação em negação – da memória, da violência, do luto – somos hoje essa gigantesca ferida aberta no meio da América Latina. Somos fratura que não para de sangrar e, às vezes, se abre mais. Nessa pandemia, o buraco ficou bem maior.
Desta vez, deixaremos o Estado brasileiro fazer como sempre fez? Um dos maiores massacres em curto prazo vividos pela nossa população poderá passar impune? (massacre, genocídio sim, porque o vírus matou, mas quem sentenciou à morte tem nome e cargo). E os coniventes? E os que silenciaram? É possível haver reparação? Como este momento interminável ficará na memória nossa e das gerações futuras?
A pandemia não terminou, mas já está em disputa seu sentido. Será outra luta árdua.
“Um povo sem memória é um povo sem futuro”
(mensagem escrita no Estádio Nacional, em Santiago, Chile,
no local de homenagem às vítimas da ditadura militar de Pinochet)
Foto: EOL |
Alguns artigos e reportagens para refletir:
Canadá vive comoção ao totalizar 1.100 restos mortais localizados onde havia internatos de crianças indígenas (El País, 2021)
Quem foi Bakhita? Restos mortais de escrava africana evocam a triste memória do holocausto negro no Brasil
(National Geographic, 2018)
Enquanto o Brasil pode eleger viúvas da Ditadura, Chile segue punindo seus militares (The Intercept Brasil, 2018)
Muito bom Lívia! Disse tudo sobre o que estamos vivendo. Muito triste tudo isso! É antigo nos despedirmos de nossos entes queridos. Agora tudo ficou tão estranho e distante. Abraçamos com os pensamentos, as lembranças e a saudade. Emocionante seu texto. Grande abraço!
ResponderExcluirLívia, como você escreve bem!
ResponderExcluirFala com clareza e justiça de tudo que nos amedronta e, de que gostaríamos de gritar indignados!
Gratidão ,Lívia, pela coragem e sabedoria!
Cara...
ResponderExcluirQue texto...
Que dor...
Que ódio!