Esmolas trocadas e um personagem
Meu coração anda apertado por esses dias... será o tempo? Será presságio? As afegãs e seu desespero? Será o Brasil? A Lua? A gata preta e miadora que se foi? Ou será somente a chegada de outra primavera vermelha e sufocante?
Tudo me parece tão grave! Tento focar no fundamental, procuro horizontes. E minha mente encontra a lembrança daquele rapaz: o que me deu uma esmola por causa da esmola que dei. Uma esmola de troco. Foi assim:
– Dona, me dá sete reais? – Um jovem bem alto, bem magro, bem negro se aproximou de mim na saída do trabalho. Suas roupas estavam sujas, seu rosto aparentava cansaço.
– Nossa, sete não tenho não, mas tenho isso aqui... – abri a bolsa, tirei a carteira, peguei dois reais e dei a ele. E seu olho espichou pra dentro da minha carteira e viu que eu tinha outra nota de dois.
– Aquela outra, você pode me dar?
– Iche, vai desinteirar o dinheiro da passagem, não dá.
Neguei de primeira, mas meu cérebro fez rapidamente um ajuntado do dinheiro que havia nos cantos da minha bolsa (bolsa feminina, com compartimentos). Além de várias moedas, eu lembrei da nota de cinco reais, troco de um cigarro que tinha comprado uns dias antes. O ônibus tava garantido. Mudei de ideia:
– Então tá, pode ficar com essa também.
O rapaz sorriu surpreso, porque eu já tinha negado e ele tinha entendido minha justificativa, não tinha falado mais nada. Foi então que ele enfiou as mãos nos bolsos da bermuda, pegou suas moedas e me ofereceu.
– Não, não precisa...
Diante da minha negativa, ele foi mais ágil: jogou as moedas dentro da minha bolsa, que ainda estava aberta. E não deu mais conversa, fez um “joinha” no final e saiu meio rindo. Eu fui andando pro outro lado, engraçada e absurdada da situação. Quando cheguei em casa, juntei as moedas e tinha mais de 1 real!
Depois disso, o vi outras vezes no bairro movimentado onde trabalho. Até já nos cumprimentamos, ele se lembra de mim também. Às vezes seus olhos estão meio perdidos, os gestos agitados pelo vício. Em outras ocasiões está mais são. Percebo que tem algo infantil naquela sua compridez toda. Quantos anos terá? Como se chama? Qual a sua história? Não sei ainda. Mas sei que seu olhar pode ter uma certa doçura, uma alegria distraída, talvez segredo de mundos que ele habita.
Certo dia, numa esquina cheia de gente, as pessoas viram nossa saudação cortês e nos olharam, estranhando. Eu, uma mulher branca e ligeiramente apresentável, cumprimentando um jovem perdido, esfarrapado, que ninguém quer ver. Que inusitado! E que perigo se aproximar (outros pensaram)! Aquela situação, naquela esquina, foi a foto instantânea do racismo nosso de todo dia, percebi depois. Nem imaginam que aquele cara me deu uma esmola, uma surpresa e um horizonte.
Não importa qual foi sua intenção ao me dar as moedas – pode ser que tivesse mais dinheiro, ou que não goste de andar com tantas moedas, direito dele. E quem sou eu pra julgar como ele usaria o pouco que lhe dei.
O fato é que aquele homem-menino, por um breve momento, saiu de dentro de si para se colocar em meu lugar, dando dinheiro pra ajudar na minha passagem. Justo eu, que tenho tantos privilégios em relação a ele. Foi o cúmulo da empatia, pensando na situação em que ele está. Muitos brasileiros, do alto de suas casas sólidas e metidas a besta, afundados em seus problemas mesquinhos e em sua moral vazia, não teriam essa capacidade. Nunca chegarão aos pés dele, o "Jean Valjean" negro que vaga (sem saída, sem perdão) pelas ruas da cidade.
Obs.: Jean Valjean é o famoso protagonista do livro "Os Miseráveis", de Victor Hugo, publicado em 1862, na França.
Nossa, o máximo da empatia mesmo. A crueldade do mundo e a empatia dessa pessoa se manteve. De chorar, né.
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