A rainha e o ferreiro



Eu enxergava minha avó como a Rainha das Plantas. Seu domínio era o quintal, imenso aos meus olhos de criança. Um mundo de canteiros, caminhos luminosos, passagens secretas, além das estufas escurecidas onde cresciam aqueles cultivos que exigiam mais proteção. Já ao sol, tinha parreira de uva, mangueira, pé de jambo e uma infinidade de plantas e flores, para usos humanos ou não - viviam apenas.

A casa que conheci era grande, mas começou incrivelmente pequena. Minha tia, a filha mais velha, guarda a foto da casa original dos meus avós maternos: um casebre de três cômodos, muito humilde mesmo. O bairro era puro mato, os lotes, grandes e sem muros, com cercas baixas por onde pulavam galinhas e crianças. Anos 40, calculo... Aos poucos, aquele casal foi fazendo filhos e multiplicando os quartos. Subiram paredes e tetos, criaram salas, pintaram, cuidaram. E tiveram a maravilhosa ideia de construir aquele alpendre azul e  fresco, onde brincávamos tanto no verão.

Mas também havia o porão, escuro, ancestral, que estava lá antes de tudo, na base. Eu morria de medo só de passar perto. Nunca nos deixavam entrar e ele vivia bem fechado com taboa de madeira e pregos. Às vezes bastava, mas às vezes parecia pouco pra nos proteger do que podia haver lá. Só nossa avó tinha o poder de entrar no porão sem temer. Sempre ela, a rainha do verde e das sombras, dos frutos e das raízes, da terra úmida e dos seres que ali moravam. Eu tinha um pouco de medo dela, dos segredos que possuía. Pra mim, a avó era um mistério.

Já meu avô era o senhor dos metais. Da sua oficina, na parte de baixo, quase na saída do terreno, fugiam faíscas e um cheiro sanguíneo. No seu ofício de ferreiro ele criava muitas engenhosidades, mas o que me encantava era o chão repleto de molinhas – macarrões-parafusos feitos de matéria planetária. E como me lembro daquele homem sereno subindo pelo quintal, indo tomar sempre no meio da tarde um gole do café doce da avó.

Ele, que moldava o ferro, tinha um olhar que era o oposto da dureza. E ela, que era a dona de toda a vida ali, às vezes tinha no semblante o aço justo das peças do nosso avô. Eram complementares. Dois alquimistas.



Sobre memória, identidade e tempo, leia aqui meu texto sobre Conceição Evaristo, mestra que tem me provocado muitas reflexões...  

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