Sobre a escritora de olhos d’água


A noite não adormece
nos olhos das mulheres
a lua fêmea, semelhante nossa,
em vigília atenta vigia
a nossa memória.

A noite não adormece
nos olhos das mulheres,
há mais olhos que sono
onde lágrimas suspensas
virgulam o lapso
de nossas molhadas lembranças.

A noite não adormece
nos olhos das mulheres
vaginas abertas
retêm e expulsam a vida
donde Ainás, Nzingas, Ngambeles
e outras meninas luas
afastam delas e de nós
os nossos cálices de lágrimas.

A noite não adormecerá
jamais nos olhos das fêmeas
pois do nosso sangue-mulher
de nosso líquido lembradiço
em cada gota que jorra
um fio invisível e tônico
pacientemente cose a rede
de nossa milenar resistência.

("A noite não adormece nos olhos das mulheres", poema de Conceição Evaristo)

Esses versos, que já tinha lido antes, me chegavam em pedaços na última semana. Assim como as imagens na mídia: manifestantes, em sua maioria mulheres (e negras), da comunidade de Jacarezinho. A mãe (negra) mostrando na tela o quarto ensanguentado da filha (negra). Um rapaz (negro) ferido foi esfaqueado pela polícia ali. Depois teve a mãe (negra) de João Pedro, o menino (negro) de 14 anos assassinado pela polícia dentro de casa, há um ano, em São Gonçalo, Rio. Ela diz na reportagem que até hoje nada foi apurado sobre os culpados. João Pedro morreu numa operação da Core, a mesma unidade da Polícia Civil da chacina de Jacarezinho.

De certa forma, a dor de tantas, a indignação diante do projeto de extermínio defendido (mais uma vez) abertamente, se encaixou com a escritora que eu já havia escolhido para esta semana no blog. Era a mesma Conceição Evaristo, autora do poema acima. Só que o texto era outro, o poema outro, tudo outro. De repente, por causa do que foi acontecendo, falar sobre mães escritoras não fazia mais sentido e não faz ainda agora. Melhor seria falar sobre mães insones, mães cujos olhos marejam lágrimas mesmo quando sorriem, com eternos "olhos d’água". Em sua maioria, mulheres negras.

E não tem ninguém que fale de modo mais lindo sobre as mulheres negras que Conceição Evaristo. Essa mulher hoje com 74 anos, belorizontina, nascida na favela, escritora premiada, ainda que pouco conhecida do grande público. 

Evaristo lançou seu primeiro romance, “Ponciá Vicêncio” (que recomendo muito), aos 57 anos, em 2003. Porém bem antes disso foi faxineira, depois professora da educação pública no Rio, hoje é doutora e tem uma obra muito fértil, que inclui conto e poesia também. Pelo que já li, Evaristo escrevia há anos mas guardava tudo na gaveta, como tantas de nós. Há 20 anos, isso tudo começou a sair pra fora e não parou mais...
 
Foto de Richner Allan

Numa de suas entrevistas, Conceição pede para não se aterem apenas a sua biografia. Por isso, não vou fazer como fiz com Cora Coralina. A escritora pede que leiam principalmente seus livros. Explica que, quando se pensa numa escritora negra, associa-se a uma literatura voltada para um público “militante” - o que, além de reduzir seu trabalho, é parte do preconceito que os autores negros sofrem. Lógico que suas criações contêm isso - afinal a cor da pele é definidora de existências e destinos no Brasil -, mas são muito mais.

Pra mim, que sou branca (ou listrada, como disse uma vez meu filho aos 3 anos), ler Conceição tem sido uma experiência literária, psicológica, social e histórica. Sua prosa é forte, realista, dura que dói, mas ela é mestra em conectar mundos externos e internos, de um jeito que nos envolve muito. Seus personagens, principalmente os femininos, têm poder, mas também defeitos, medos, dores, paixões, sonhos. Ponciá Vicêncio, sua primeira personagem de romance, mexeu muito comigo.

Não sou crítica literária e nem li toooda a obra dela, mas uma coisa que me marcou em suas histórias foram seus personagens povoados de Memória – essa que é das primeiras coisas a serem destruídas na dominação de um povo ou etnia. Não à toa, os africanos sequestrados eram separados e ganhavam novos nomes logo que desembarcavam no Brasil.

Então, a literatura de Conceição Evaristo proporciona reencontros com histórias e  territórios, com ancestrais e suas heranças que vão até os dias de hoje. E com o papel essencial que as mulheres têm como costureiras do tempo. Porém, sua obra também é sobre a falta dessa herança, o desfazer de laços e afetos, a vida separada que é tão comum nas grandes cidades - e atinge todos os oprimidos, de todas as cores, ainda que de formas diferentes. O capitalismo foi tirando esse sentido de comunidade, separando, desgarrando praticamente todos os povos do mundo ao longo dos séculos. É parte do processo de nos transformar em meras mercadorias, descartáveis e subjugáveis... 

Ler Conceição é, também, olhar pra trás e resgatar as memórias contidas em cada um de nós.

Obs: Conceição Evaristo recentemente tem ficado mais conhecida (e eu sou parte dessa onda). Em 2015 venceu o Prêmio Jabuti. Em 2018, poderia ter sido a primeira escritora negra a entrar na Academia Brasileira de Letras, mas não ganhou – parece que se recusou a puxar o saco e a oferecer jantarzinhos para seus membros, pelo que entendi...


Links para três obras que recomendo demais:

e também:

Comentários

  1. Olhos d’água foi um dos livros mais marcantes que já li. Ela é incrível!!

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  2. Olhos d’água é um dos melhores livros que já li. Ela é incrível!

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  3. Poema intenso. Dissertação eloquente... há que se ler conceição.

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