O poeta de todos os tempos


Tem textos que custam a sair. É que me dei uma tarefa espinhosa e num período psicologicamente difícil: me propus a escrever sobre o poeta que mais me acompanhou e me influenciou, o itabirano Carlos Drummond de Andrade. Escrevi tudo o quanto é tipo de texto, pensando em cada aspecto da sua vida e da sua poesia. Davam tratados absurdos e sentimentais! E as linhas escritas não se aquietavam no lugar, não estavam satisfeitas. Da luta com as palavras o poeta já avisou: “são muitas, eu pouco”. Que luta ingrata e vã!

Então decidi que não precisava escrever tudo de uma vez (o que agora é óbvio, mas no início não era, tamanha minha ansiedade). Também não precisava ser um texto muito biográfico, porque tem farto material na internet sobre ele. Descrever uma pessoa é um grande desafio, explicar um poema, quase um pecado. O verso é feito para ser sentido e ficar ressoando em nós, como música.

A primeira coisa que gostaria de falar sobre Drummond é que ele lembra muito os dois avôs que tive. O vô paterno, pela magreza e altura, além da clássica testa grande que herdamos. O vô materno, pelo jeito tranquilo e mineiro de falar – tanto que foi apelidado de “Sacumé” pelo meu pai. 

Assistindo a várias entrevistas do Drummond velhinho (ele viveu de 1902 a 1987), vejo que tem um jeito ressabiado e gozado de falar das coisas e de si mesmo:

“Desde 1920 que eu cronico né. Mas a crônica é um gênero engraçado. Ela não tem importância em primeiro lugar. Num vamo dizer que a crônica seja importante! Eu considero o meu ofício de cronista uma espécie de palhaço, que dá cabriolas, dá saltos, molecagens, pra distrair um pouco o leitor comum”.

De fato ele tem crônicas lindas, as quais escreveu até o último dia de vida. Começou como jornalista na BH dos anos 1920, quando era meio anarquista, meio comunista – isso era confuso mesmo no Brasil daquela época. Saiu de Itabira jovem, foi expulso do colégio, não quis herdar o que queriam lhe impor. Também não quis escrever como queriam lhe impor e por isso foi poeta fundamental no Movimento Modernista brasileiro. Dizem os amigos que Carlos subia com coragem os arcos do recém-inaugurado Viaduto Santa Teresa.

(A relação complicada com a família e a cidade natal merece texto a parte ok?)

Mas foi pela poesia que Drummond me pegou – eu e todos os brasileiros. Era considerado “o poeta do cotidiano” porque trouxe novos sentidos ao acontecimento banal, traduziu em versos a vida, tornando-a maior. Cantou o leiteiro assassinado, a puta, a mulher destruída pelo casamento, a mãe solo, a filha perdida, o comediante, a criança no jardim, a sessão de cinema, o amor no parque, o interior de Minas e a cidade grande. Falou de memória e teve a audácia de falar de velhice e erotismo – um tabu.

E pensando agora, acho mesmo que foi nosso poeta mais popular. A expressão ainda usada “E agora, José?” vem de seu famoso poema. E quem não se lembra, mesmo que vagamente, de versos como “no meio do caminho tinha uma pedra...”, ou “êta vida besta meu deus”. Ou já leu na escola “Quadrilha” (“João que amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria...”). Ou encontrou por aí trechos de “Mãos dadas”, que vira e mexe viraliza nas redes sociais? Acho bonito isso de suas palavras criarem asas, superando o autor.

Quando conheci a obra de Drummond (no cursinho pré-vestibular), fiquei maravilhada e perturbada. Com suas ironias, seu senso crítico e social, com sua solidão em meio a um mundo desigual, irracional e já em crise. Não esqueçamos que o poeta vivenciou a ascensão mundial do fascismo, duas guerras mundiais, industrialização e urbanização do País. Além de duas ditaduras. Ele não podia passar alheio a isso tudo. Porque se entendia preso ao mundo e ao seu tempo. Tinha de fato “o sentimento do mundo” em seu coração.

Seus livros mais celebrados são do período tumultuado da Ditadura do Estado Novo: “Sentimento do mundo” (1940), “José” (1942) e “A Rosa do Povo” (1946). Desse tempo são alguns poemas que amo de paixão: “Elegia 1938”, “Nosso tempo”, "Caso do vestido" e este aqui:

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.


(trecho pequeno de "A flor e a náusea")

Nessa época Drummond já era funcionário público no Rio, cidade que adotou pelo resto da vida. Os anos 40 foram agitados pra ele, que dirigia um jornal do PCB ao mesmo tempo em que ganhava notoriedade literária e também se acomodava no cargo público, como ele próprio admite em suas memórias. Foi crítico à Ditadura de 64, mas sem se expor abertamente. Estava mais velho e mais desiludido, já tinha vivido muitos desfeitos.

Seu olhar atento para questões existenciais e sociais sempre me impressiona. Século depois, não é que as questões são as mesmas? É fato que muita coisa mudou. Guerras, revoluções, crises, grandes invenções tecnológicas, globalização... nada disso nos salvou das grandes misérias humanas em que chafurdamos hoje. Todas elas já estavam em sua poesia.

Permanecemos soletrando o mundo ao mesmo tempo em que o perdemos, só que agora com smarthphones. E realmente não podemos sozinhos dinamitar a Ilha de Manhattan – até já tentaram, querido Drummond, e não foi a solução. 

Continuamos matando leiteiros do mal, padeiros do mal, tingindo de vermelho favelas e auroras, alimentando o ódio e o nojo, sumindo meninas, rindo no cinema, nos estrepando por amor, jogando bombas por raiva, elegendo loucos e homicidas. 

Taciturnos, às vezes nos damos as mãos, às vezes colhemos flores – as tímidas continuam a nascer no asfalto.


DICA:
Pra quem não gosta ou não tem tempo de ler poesia: já experimentou ouvir? No youtube e outras plataformas você encontra  poemas recitados por Drummond e outros artistas...




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