Bloody Mother Fucking Asshole


O título é um palavrão e nome de uma música composta por Martha Wainwright, cantora canadense de folkrock. E é tudo o que desejei dizer a alguns homens no último mês. Foi tão ruim que esperei março acabar para tentar publicar algo. Tudo de pior parecia possível até o dia 31 – o infame dia em que alguns comemoram as décadas em que nossa democracia, já tão frágil e parcial, nos foi roubada.

I wish I wish I was born a man”, me diz a voz no som velho, como se saísse de mim. Em março eu desejei ter nascido homem. E a canção de Martha, cuja letra é muito linda e recomendo que busquem uma boa tradução, nunca se encaixou tanto.

Foram muitos malditos e escrotos na minha vida pessoal e na vida pública também. Pra começar, uma amiga muito querida tendo que se desdobrar para pagar as dívidas do ex, maldito ex. Aí teve homens toscos que atendi no trabalho; e depois um deputado falando que ucranianas são fáceis porque são pobres; e um 8M cheio de infâmias; e homens fazendo mais uma guerra imbecil em que milhares de mulheres e crianças sofrem. Ver esse mundo masculino se movendo com tanta desenvoltura fez com que cada micro agressão cotidiana, que nós mulheres conhecemos muito bem, me doesse mais.

Quantas vezes pensei: e se eu fosse homem, isso estaria acontecendo comigo? Como seria minha vida? Me cobraria tanto, me culparia tanto? Sentiria todo esse peso? Como eu reagiria a tal situação? Sei que a vida está muito difícil pra população pobre deste País. Que os homens não são todos privilegiados, que a maioria está fudido também. Mas pense sempre: para mulheres, na mesma situação, é sempre pior.


Pra quem ainda não leu, recomendo o artigo que o jornalista Jamil Chade escreveu em defesa das “fáceis ucranianas” (deixo o link no final). Em seus anos de coberturas internacionais, Jamil conta episódios que explicam a exploração e a vulnerabilidade dos corpos femininos e infantis diante de cada desastre, guerra, fome, desigualdade, pandemia. Essa é a lei universal que governa conflitos e desigualdades há alguns milênios inclusive.

Trabalho em uma região comercial cheia de mulheres de todos os jeitos e cores, vendedoras em sua maioria. Durante a pandemia, depois do primeiro fechamento em BH, as lojas reabriram. Vieram batalhões de mulheres e, com elas, seus filhos que estavam sem escola e lugar para ficar. Nunca vi a região tão cheia de crianças, nas calçadas, nos fundos dos restaurantes e das lojas. Teve até um dia em que, em plena Rua dos Goitacazes, dois meninos batiam bola. Milhares de corpos femininos todos os dias pegando os ônibus raros e lotados, com filhos, bebês no colo, todos se expondo ao risco de se contaminar quando não havia nem cheiro de vacina. Era isso ou perder o pouco emprego disponível.

Os homens morrem muito, as mulheres ficam. Os homens vão para a guerra, para o tráfico, para as prisões, para os bares, ou resolvem se matar em brigas por qualquer motivo. As mulheres são maioria nos campos de refugiados, nas favelas, nas ocupações sem teto, nos ônibus lotados, nas cozinhas, nas enfermarias, nas filas e nas ruas. 

As que morrem são substituídas por outras mulheres. São sempre elas a cuidar e a remediar os desastres causados por outros – os homens brancos e ricos que comandam todas as estruturas de poder do mundo ocidental. Como disse Jamil Chade em outra ocasião, as mulheres garantem a continuidade da família, da vida, da espécie. Isso também é universal.

“Nossa mãe, muitos pais foram comprar cigarro”, disse meu filho outro dia sobre os colegas de sala. A família “tradicional”, tão defendida por alguns, nunca existiu para todas as mulheres, especialmente as negras e pobres. As que não tinham status para casar e que viravam a segunda família, ou a família invisível. É olhar em torno e ver o quanto as famílias brasileiras estão cada vez mais monoparentais, mais femininas, não exatamente porque as mulheres querem, mas porque os homens não estão dando conta. Tenho pensado é que não estão dando conta do mundo que construíram.

Que caos eles criam. Os mais barulhentos gritam por armas, decência, fêmeas comportadas, mais mercados (pessoas) para dominar, mais florestas para destruir. Vejam a guerra na Ucrânia! Que aberração é assistir aos grandes líderes mundiais disputando quem tem a bomba maior, o poder maior, o pau maior, a voz mais grossa ou sei lá o que mais. Tudo para não admitir que o fracasso da humanidade é culpa deles. Que gerações mais novas estão sem futuro por causa deles. Creio que deviam passar o bastão pra nós – que já estamos na base de toda a sobrevivência.

Aos homens que me leem, que não detêm poder, que não comandam o mundo ou este triste País. Aos que não são machos tóxicos, mas simplesmente machos e querem um mundo melhor, se perguntem: estou disposto a abrir mão dos privilégios masculinos que me rodeiam? Como falo com uma atendente? Como trato minha companheira? E minha mãe? Como educo minha filha? Como olho uma mulher vulnerável? Eu consigo de fato ouvir as vozes femininas que me rodeiam?

Alguns desses privilégios parecem pequenos, quase invisíveis a depender de como se vive. Mas pra quem não os têm, fazem toda a diferença. Nós mulheres passamos a vida driblando-os, fingindo que não existem, nos explicando, nos afirmando. Chega um dia em que fica difícil fingir que está tudo bem.

I will not pretend (eu não vou fingir)
I will not put on a smile (eu não vou por um sorriso)
I will not say I'm alright for you (eu não vou dizer que estou bem pra você)
When all I wanted was to be good (quando tudo o que eu queria é estar bem)
To do everything in truth (para fazer tudo verdadeiro)
To do everything in truth (para fazer tudo verdadeiro)

(trecho da música Bloody Mother Fucking Asshole, tradução livre minha)


Leia também:

Carta para Arthur do Val: a condição feminina na guerra e na paz - Artigo de Jamil Chade, 05/03/22, UOL.

Um general e as mulheres (mães e vovós) - um texto que escrevi no distante 2018...

Comentários

  1. Esse "passar o bastão" é "senta que lá vem história", né?! E quanta história!

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  2. 👏👏👏👏👏 a maior verdade que li essa semana, da para ver a revolta nas suas palavras. Está de parabéns!

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