Duas mães em uma

Falar sobre minha mãe é difícil. Talvez eu consiga descrever a ligação que sempre tive com ela. Minha melhor amiga. Minha filha. Minha mãe. Várias em uma só.

Explico-me: em 2002, aos 48 anos, ela teve que fazer duas cirurgias cerebrais por causa de 7 aneurismas, quase morreu, se recuperou mas ficou com um monte de sequelas. Eu tinha 20 anos e acabado de entrar na faculdade. Meus irmãos tinham 14 e 16, adolescentes. Foi uma convulsão em tudo, porque ela era nossa base. Durante um tempo, tivemos que ser mães e pais dela, fazer sua comida, dar banho, ajuda-la na fisioterapia. Acho que deu certo, apesar de sermos muito novos. Mas foi ela que conseguiu. Ela é invencível.

Acontece que, com as mudanças no cérebro, ela ficou diferente. A primeira mãe tinha uma postura mais de amiga e nunca chorava. Ela era animada, equilibrada, participava das festas adolescentes que rolavam lá em casa. Minhas amigas conversavam mais com ela do que comigo: era a “Tia Lena” das garotas se descobrindo e precisando de ouvidos abertos que outras mães não tinham. Sentávamos em volta dela, na mesa redonda de casa, para ouvi-la dar opiniões e rir despreocupada das nossas confusões sobre sexo e garotos.

Hoje ela é mais mãe. É mais carinhosa e nos beija. É mais emocional e estourada (fácil de espalhar viu). Também ficou mais religiosa. Eu entendo, depois de tudo o que passou. Essa foi uma mudança grande: agora minha segunda mãe lê muitos livros espíritas e reza para o “santo gago”, como a gente brinca. Mas não é puritana ou conservadora. Continua odiando missas, ri de piadas indecentes, ouve quietinha com bochechas vermelhas quando eu e minha irmã conversamos sobre sexo, e quando vou pra “gandaia” depois pergunta se transei com alguém.

Apesar de ter mudado nas suas reações ao mundo, sua essência permanece. Foi ela quem me entendeu pelo olhar quando eu disse que estava me separando do pai do meu filho. Mulher, também oprimida, ela me deu a única coisa que eu precisava naquele momento. Do mesmo jeito que, lá atrás, sem ser invasiva, mostrou que meu primeiro amor estava ficando doentio (eu tinha 16 anos). Era a mesma que, por anos, me esperava chegar da aula à noite para conversar e assistir Jô Soares.

Seus valores são tão fortes que não mudaram também. Na adolescência, ela foi do PCdoB e contra a ditadura. Ficou triste com o impeachment vergonhoso da Dilma, sempre será #elenao porque é uma crítica de tudo o que é preconceituoso e mentiroso. Explode de raiva contra o desgoverno Bolsonaro e também contra os vilões das novelas. É justa e humana por natureza. Pode ter dificuldade de se expressar, mas sua sabedoria não foi tirada na cirurgia.

Codinomes:

“Leninha do AVC” (se sair candidata a vereadora)

“Passarinho” (quando acorda de manhã)

“Mãezoquinha”

“Mãezona” (ex-genro)

“Tia Lena” (nossas amigas)


Frases clássicas:

“Eu quero é encher o bucho” (depois de uma refeição pequena no shopping mais burguês da cidade)

Piscina = água do cú dos outros

“Esse vestido é obsoleto” (quando pusemos um vestido nela, logo depois da cirurgia)

“Coisa sem graça ficar vendo telhado da casa dos outros” (quando a levamos a um passeio no Mirante do Mangabeiras, ela ainda de cadeira de rodas)

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