Resgatando minha mãe

Eu e minha mãe temos muitas semelhanças, influências comuns, coincidências, sei lá. À medida que envelheço, me acho cada vez mais parecida com ela. E às vezes me assusto com a personalidade parecida, em como ela pode ter me influenciado tanto sem que eu nem percebesse. Devo perguntar pra um amigo: “o elemento esquerdizante” pode ser herdado?

Minha mãe comigo, setembro/81


Na nossa história tem muitas coincidências legais: eu fui mãe também aos 27 anos; também fui militante de esquerda (ela do PCdoB, eu do PSTU); ela tinha um feminismo latente e era uma mulher à frente, no seu tempo: transou antes do casamento, “ficou” quando ainda não era usual fazer isso, saia de moto com amigos. Ah, ela se tornou cruzeirense numa família só de atleticanos; eu me tornei atleticana numa família só de cruzeirenses! E também fiz umas loucuras sexuais por aí...

A jovem Lena brigava com meu avô, um homem muito bom mas que sabe-se lá porque defendia o governo militar; ela ouvia Caetano e Elis, comprava discos proibidos, ia em shows clandestinos, tinha um grupo de amigos chamado “Maloca”... Era ela naquela música de Belchior: “cabelo ao vento, gente jovem reunida...”

Em comum, também, juntamente com tantas outras mulheres, foi o apagamento dessa sua vontade pelo machismo. Ela, como a maioria de nossas mães, teve os sonhos encolhidos e guardados pra si por causa das obrigações com a família e com os maridos. Minha mãe quase se formou como psicóloga e tenho certeza de que teria sido incrível nessa profissão. Mas veio a “roda viva” passando em cima de tudo, nessa roda viva estou eu e meus irmãos, meu pai, todo o peso de criar filhos, cuidar da casa, se confinar cada vez mais a esse espaço tão desvalorizado socialmente. Minha mãe esteve conosco o tempo todo, mas não esteve consigo mesma. Hoje entendo perfeitamente porque ela gostava de dormir tarde apesar de acordar cedo. Ela ficava assistindo Jô Soares e filmes pela madrugada. Era o único tempo que tinha só pra ela.

Pois é, essa mulher passou por isso tudo, foi parte da vanguarda de uma geração, construiu uma família, criou os filhos, teve que enfrentar as sequelas graves de um AVC, teve que lutar pela sobrevivência, pela dignidade, pela autonomia. Ela conseguiu fazer isso tudo com uma força e uma consciência que impressionam e me deixam sem palavras. Sou pequena perto dela. Tudo isso foi ela, veio de dentro dela. Como eu poderia ficar horas falando sobre essa mulher...

Obs.: mais tarde, meu avô admitiu que a ditadura estava errada e pediu desculpas a ela.


O que minha mãe já fez e eu não:

- Fugiu da polícia numa repressão ao congresso da UNE que rolava em BH (acho que foi o mesmo em que a Helena Greco foi pra rua se posicionar contra o ataque aos estudantes). Quem salvou minha mãe dos cavalos foi um cara que a puxou para dentro de uma padaria fechada.

- Já apareceu na televisão como líder secundarista, na época da ditatura, e ficou com medo de estar na lista do DOPs.

- Andava na garupa de moto (eu sou medrosa com moto)

- Subia na mangueira enorme que tinha na casa de meus avós

- Nunca tomou antidepressivos

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