Exausta
É de Adélia Prado um dos poemas que sei de cor, chamado “Exausto”:
“Eu quero uma licença de dormir
Perdão para descansar horas a fio
Sem ao menos sonhar
A leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
Foi o sono profundo das espécies,
A graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.”
Há anos gosto desses versos. Eles me comoveram bem antes da enorme exaustão física e mental que me (nos) atinge agora. Na época, talvez nem soubesse o que é exaustão.
Minha memória percorre com saudade o que era minha vida há cinco anos ou menos. Sorrio dos problemas que tinha, sorrio das críticas que fazia aos governos de então, sorrio dos problemas sociais gravíssimos que existiam. Era tudo difícil, mas ainda assim meio doce sob o olhar que tenho hoje.
Mas isso foi antes da contabilização dos mortos às centenas de milhares. Antes de milhares de crianças brasileiras de repente sem pai ou mãe e de milhares de viúvas e de viúvos. Antes dos pais cujos filhos se foram bem antes do tempo e que passarão todos os dias sofrendo por não tê-los substituído nessa ida.
Tudo o que vivi foi lindo porque foi anterior a esse moedor de vidas (vidas trabalhadoras) em que transformaram nosso País. Antes de virarmos cobaias de um experimento médico e social atroz. Antes do grande desastre combinado e evitável a que tentamos sobreviver.
Gosto de “Exausto” porque diz também do descanso que pode ser ausência de vida. Esse repouso de ser matéria-prima, parte de um ciclo, potência de vida ainda que sem ser. Estado de semente. Diante de tantas mortes, posso pensar que os 400 mil brasileiros perdidos em um ano voltaram ao estado de sementes: ao mesmo tempo origem e destino do que podemos ser. Sementes que descansam agora, exaustas.
(agradeço à Prisca Paes por ceder sua pintura para ilustrar esse post. Clique aqui pra conhecer o trabalho dela)
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