Poeta, doceira e mãe


Sempre penso em algumas escritoras e poetas que também são (ou foram) mães. Como elas conseguiam escrever? Quantas horas a mais o dia delas tinha? Como conciliavam trabalho, família e sonho? Falo isso pensando na realidade brasileira que ainda é tão pesada para a maioria das mulheres. Para muitas, sonhar é um luxo.

Foi então que resolvi escrever um pouco sobre autoras que gosto, exímias com as palavras, trabalhadoras, mães, mulheres reais. Sem idealizações do tipo: se elas puderam, todas podem ok? Além da persistência, em cada trajetória de vida pesam muitos fatores e uma certa dose de sorte. Esse primeiro texto é sobre a poeta (ou poetisa) mais especial pra mim e foi escrito com carinho justo para o Dia das Mães.

Começo com Cora Coralina. Sim, essa “senhorinha” aparentemente frágil da foto era uma fortaleza na mente, no corpo e no coração. Um coração em que cabiam todas as mulheres do mundo e também os personagens daquela sua terra goiana.

Considero Cora uma mulher bastante avançada pra sua época e seu meio e vou explicar mais abaixo essa ideia. Isso está também na sua poesia, que tem um estilo suave e sem rodeios, profundo sem ser complexo, regional e também moderno. Assim como Carlos Drummond, pra mim Cora é daquelas pessoas que conseguiam se descolar de seu tempo e seu lugar social pra irem além...

Um pouco da sua história

Ocorre que Anna Lins nasceu em 1889, ano de grandes mudanças no Brasil. O fato se deu na Cidade de Goiás, apelidada hoje de “Goiás Velho”. Até 1937 essa cidadezinha foi a capital da província de Goiás, naquele tempo uma região ainda pouco explorada. Era o sertão brabo.

E naquele isolamento sertanejo, num tempo em que as mulheres não estudavam quase nada (Anna estudou somente os primeiros anos do primário), surgiu A CORA CORALINA, seu pseudônimo de juventude.

Vislumbro uma jovem mulher colorida e luminosa, que publicava contos desde os 14 anos, escrevia para pequenos jornais da região, juntava outras mulheres, participava de saraus e clubes literários. Era livre? Talvez mais do que a média.

Deu-se o caso que, em 1911, Corapaixonada decidiu se mudar para SP com um advogado, homem separado – seus biógrafos dizem que possivelmente já estava grávida. Nós mineiros conseguimos imaginar bem o escândalo que deve ter sido na época. Pra piorar, o divórcio era proibido ainda. O que ocorria era o “desquite”, a separação real, mas o casamento permanecia no papel e as futuras uniões não tinham respaldo legal. Detalhe: o divórcio só foi legalizado em 1977 sabiam? Sempre me assusto com essa data...

Na vida de Cora isso vai cobrar seu preço depois. Em 1934, após 20 anos de casada, seu marido morre e ela se vê só com os quatro filhos, sem proteção ou direitos. De cidadezinha em cidadezinha do interior paulista, a Coramãe teve que sustentar a casa vendendo livros, fazendo quitutes e linguiça caseira e, aos poucos, foi voltando pra sua terra – a terra que nunca havia saído de si...

Cora Coralina dizia que ao chegar aos 50 anos havia perdido o medo. E foi nesse tempo que refundou a vida na Cidade de Goiás, após 45 anos de ausência. Tornou-se doceira de renome e recomprou a “Casa Velha da Ponte”, que fora de sua família e onde hoje é seu museu. A Coradoceira ainda encontrava tempo pra escrever e divulgar sua poesia. Um cajuzinho do cerrado e um poema, que espertíssima!

Aos 76 anos a Corapoeta teve seu primeiro livro publicado: Poemas dos Becos de Goiás e histórias mais (1965). Depois vieram outros, bancados a custo em editoras locais. A poetisa alcançava um certo reconhecimento no estado até que, em 1979, o consagrado Carlos Drummond conheceu seu trabalho e escreveu sobre ela no Jornal do Brasil (redigiu também uma linda carta para ela...). Foi quando o País a descobriu.

Cora dizia que seus doces eram melhores que seus poemas. E que era apenas uma doméstica, com pouco estudo, mais cozinheira do que escritora, palavras usadas por ela. Mas tinha também muita consciência do que passou para chegar ali. Escreveu num poema: “sobrevivi, me recompondo aos bocados, à dura compreensão dos rígidos preconceitos do passado”.

Tem uma passagem da vida dela que adoro. Ao receber o Prêmio de Intelectual do Ano (1976) em Goiás, Cora disse assim: “não fizeram favor nenhum, eu venho comparecendo à literatura do meu estado desde a idade de 14 anos. Então eu digo: as outras todas que escrevem têm muito tempo de vida para receberem homenagens, mensagens e diplomas. Eu estou no fim da picada! Vocês não fizeram nada mais do que uma justiça”. Ah, como ela era fantástica!

O que recomendo: leiam os livros dela, procurem versos que não sejam os versos bonitos, mas “meio batidos”, que sempre circulam nas redes sociais e internets da vida. Vão descobrir uma escritora sagaz, sensível à realidade da época e às imensas transformações sociais e literárias do seu tempo.

Meu poema preferido

TODAS AS VIDAS

Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando pra o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço…
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo…

Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d'água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.

Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.

Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.

Vive dentro de mim
a mulher roceira.
– Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.

Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha…
tão desprezada,
tão murmurada…
Fingindo alegre seu triste fado.

Todas as vidas dentro de mim:

Na minha vida –
a vida mera das obscuras.

(Do livro Poemas dos Becos de Goiás e histórias mais, 1965)


Uma das fontes que consultei foi essa ótima reportagem AQUI, publicada em 1977, que relata diálogos e opiniões de Cora.

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