Canto ao cinza


Desculpem-me
os que cantam a terra
mas eu canto o asfalto.
Sou filha da urbe
nascida na pólis,
meio sem raiz
onde me fincar.
Aqui onde é fácil
sumir
Aqui onde é fácil
fingir
É também onde
pode ser mais fácil amar.

Meu canto não é louvor
É busca
de origem e memória.
Não me orgulha ficar longe
da terra úmida, do ar puro.
Mas se for de alguma ajuda
sei pegar muito ônibus
e não me perder
sei evitar morrer
na grande selva humana.
O asfalto é meu meio.
No cinza dos prédios me criei.

É que metade da minha vida
se passou tendo o Centro como casa:
ficava mais lá do que na minha
e nos ônibus obtinha 
uma parte do meu descanso.

Na Bahia, vários empregos
Na Amazonas, o cursinho
Na Rio de Janeiro, cinema
Na Praça Sete, a luta
Em todos os botecos
uma história, uma conta, uma barata.
Não importa, ali era meu meio
Na noite cinza eu me aliviava.

De cada rua lembro o cheiro
de caqui, caldo de cana e carnes,
e de mil cozinhas a alimentar
os batalhões de trabalhadores
do sofrível capital local - 
e se sobrar alimentar
o humano resto desse capital.

Na cidade é perceptível 
quando a fome aumenta
(quando a raiva aumenta também)
Mais olhos, mais crianças nos sinais
Mais corpos nas calçadas.
Mais preciosas trouxinhas
(habilmente escondidas
nas árvores e bueiros).

Ao fim dos consumos, bem tarde,
começava-se outra cidade.
Castelos construídos em papelão,
cobertores cinzas enfileirados,
fogueirazinhas...
e aparecia
até o cachorro guardado
pois é companhia bem vinda
na noite de chumbo e delírio.

E respirando fuligem e dor meu coração pulsou
(lanchonete onde chorei, bar onde amei
praça onde me reuni, rua por onde marchei)
Sou parte do aço da metrópole.
Por causa dela, talvez,
60% de aço no meu (nosso) coração.

Muitas vezes, ali, na praça feia de cimento
mas colorida de gentes
o tumulto me distraia e me abraçava
como se dissesse:
Parece,
mas você não está sozinha...


Foto: Charles Tôrres - Projeto BH - Uma foto por dia, 2015

Leia também o texto A rua nos falta

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