Os 40 anos e o tempo


Fazer 40 anos parece dar uma dignidade. Ficarei sábia? Encontrarei tranquilidade dentro de mim? Aceitarei mais o mundo como ele é? “Do alto dos meus 40 anos”, terei algo a recomendar aos mais novos? Provavelmente não. Dependendo do dia, eu poderia aconselhar algo muito criminoso contra certas autoridades criminosas da República. Seria péssimo me ouvir. Em outros dias, indicaria parar de ver notícias e assistir stand-ups no youtube – como os da comediante Bruna Louise (que estou amando).

Dias antes de “quarentar”, revi todos os meus álbuns de fotografia. Saudei amigos que se foram ou que não vejo há meses por causa da pandemia. Relembrei histórias, homenageei encontros, mesmo os mais rápidos. Encarei fotos que me incomodavam – desta vez elas não me doeram. Foi meu ritual de passagem. Em vez da sonhada festança (adiada, espero), fiquei rindo e me emocionando, nessa viagem no tempo que a fotografia proporciona.

Ficar mais velha não me incomodou porque já estava fazendo quarenta bem antes. Mudanças no corpo, novas perspectivas e necessidades. Aos poucos, o susto do passar do tempo foi se transformando em imperceptível frio na barriga.

Neste tempo, a Modernidade, e neste modo de produção, o Capitalismo, costumamos contar o tempo de forma linear e bem apressada. Contabilizamos o que sobra pra frente com receio. Buscamos as conquistas do nosso meio social: dinheiro, casamento, filhos, carreira, aposentadoria etc. Medimos por esses parâmetros o sucesso de uma vida e se o tempo foi bem usufruído. Então, envelhecer na nossa cultura é ruim, é tempo de menos para alcançar as metas – inalcançáveis para a maioria.

No entanto, chegando na metade da minha vida, percebo que o tempo passado me fez bem, psicologicamente falando. Em primeiro lugar, chego mais leve aos 40 do que era aos 30. Não que tenha sido fácil, como poderão ver mais adiante. Carrego menos angústias de etapas a realizar. Tenho noção dos sonhos possíveis. Chutei longe certas exigências. Portanto, o passar do tempo me aproximou mais de mim e do que considero importante.

Convido a outras formas de perceber o tempo. Entre nossos povos originários, o passar do tempo é positivo e não negativo. As fases da vida de uma pessoa são marcadas e comemoradas – não pelo que adquirem de bens, mas pelo que se tornam. No cotidiano, o tempo é medido pelo fundamental, os ciclos da natureza que governam a vida: nascer e pôr do sol, fases da lua, posições dos astros, estações do ano, marés, cheias e secas, nascer, crescer, morrer, e gerar outras vidas a partir da morte (além da dimensão religiosa, que não inseri aqui). O tempo é um “ciclo sem fim”, como popularizado na música de Rei Leão.

Superlua vista de Lagoa Santa, 2021 - Foto: Carlos Altman.

Na cultura iorubá, o tempo é “tão cíclico” que fatos da vida podem se repetir em gerações diferentes, ligando a pessoa aos seus ancestrais - isso explica muito das histórias de Conceição Evaristo, inclusive. Para os bantus (ou bantos), um dos povos africanos mais traficados para o Brasil e que possuem uma filosofia bem desenvolvida, o tempo possui várias dimensões: há o tempo natural, o vital, o social e o cósmico. Ah, e bem antes de Einstein eles já entendiam que tempo e espaço estão sempre juntos, são indissociáveis.

Digo isso tudo porque tenho pensado muito nos ciclos de minha vida, nos tempos interiores que vivi. Eu conto umas cinco pessoas diferentes que fui, socialmente falando, e também tive muitos ciclos pessoais de morte e vida. Cada um pode fazer isso ao pensar em sua história de vida... quantas pessoas diferentes podemos ser? Quantas vezes tivemos que nos repensar e nos refazer? O que era essencial e o que era superficial no que fomos e somos?

Nesses meus ciclos (sem fim), morreram certezas, sonhos, visões que eu tinha de mim mesma. E nasceram outras no lugar. De cada “morte” surgiu uma mulher nova, criada dos restos da anterior, lambendo feridas, mastigando culpas, mas quase sempre se conhecendo melhor.

Mas não há suavidade nesses ciclos pessoais de morrer e nascer. São parte das crises que surgem das nossas experiências com o mundo, dos nossos embates com a vida. Pode-se sair mais triste, endurecido, indiferente, mais religioso, quem sabe. Alguns podem se drogar ou passar a acreditar nas fáceis teorias da conspiração, nas quais a culpa é sempre dos outros e não sua. Às vezes é mais fácil fugir de si mesmo.

Posso dizer que ser mãe acelerou minhas crises e ciclos de vida. A maternidade literalmente me obrigou a observar meu tempo interior. Foi um processo duro. Depois de muito lutar (pois sou teimosa), percebi que não podia continuar no mesmo ritmo louco, me cobrando e produzindo tanto, querendo dar conta de tudo o que acontecia ao meu redor. Eu passei a ter cada vez mais a necessidade de me sintonizar com meu tempo pessoal, mais lento e mais reflexivo – que depois, indo até o passado, descobri ser meu “tempo natural”, metabólico mesmo. Algumas pessoas dão conta de velocidades maiores, mas eu não. E na verdade uma boa parte adoece pelas obrigações e pelo ritmo imposto, como eu adoeci.

Então comemoro não só 40 anos, mas muitos ciclos de vida pessoais, que vivi comigo. Para passar por eles, tive apoios emocionais e estruturais. Família, amigos, um trabalho fixo. E muitas mulheres fortes e vividas a me amparar: avós, mãe, tias, amigas, mulheres presentes ou não, imaginárias ou não, que encontrei por aí. Aprendi com todas elas que não se sobrevive às durezas da vida sem uma boa dose de autoconhecimento e de percepção sobre si. Talvez isso seja a tal sabedoria. Um dia chego lá.

Obs.: meu conselho de quarentona é tente não adoecer (mais).

Comentários

  1. Não sei se escritores atendem a pedidos de fãs (como os músicos, kkkkk) mas gostaria de pedir um texto sobre seus avós (qdo puder, ou inspirar-se, naturalmente). Ia amar, daqui da minha avolencia, que fosse belo como esse.

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    1. Eu já tenho coisas escritas sobre eles, mas preciso melhorar pra publicar. Prometo que vou me dedicar a atender o pedido de um amado fã :)

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    2. Brigaduuu! Ah como eu amo essa escritora!!!!

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