Janela para mim
Eu sou e fui várias. Houve um tempo em que sonhei com o futuro e a felicidade. Tinha cadernos em que anotava trechos preferidos dos livros que lia. Tinha um diário e só chorava quando via filmes tristes (enquanto meus irmãos riam de mim).
Nesse tempo eu tinha uma outra mãe e um outro pai. Ela era a amiga a me esperar chegar da aula à noite, para conversar. Ele me ensinou de pequena a amar as águas e me levou para abrir os olhos no fundo de um rio pela primeira vez (esse era o Rio Pará). Depois houve um tempo em que esse pai ficou turbulento como o rio, e outro (longo) em que eu esperava minha mãe voltar.
Houve um tempo em que eu fui jornalista, sonhava romântico que escrevendo eu poderia mudar o mundo. Houve um tempo em que sonhei que poderia ser livre se estivesse com alguém que fosse e me deixasse ser livre. Fomos sonhadoramente livres em noites de delírio, insensatez, rock e vinho barato. Tentei ser livre como ele, até descobrir que não há liberdade sem muito egoísmo e que ninguém podia me salvar de minhas próprias prisões.
Houve um tempo em que sonhei com uma casinha simples e do nosso jeito, com um filho, uma filha e um pastor alemão. O primeiro dorme na cama ao lado, assim como dormem em mim esses sonhos.
Houve um tempo em que acreditava muito pouco em mim e mais no que eu poderia ser. Um tempo em que acreditava no que os outros diziam e num motivo para tudo existir. Um tempo em que anotava os sonhos (de quando a gente dorme) para interpretar depois que acordava. Eram sonhos com mares agitados, maremotos em piscinas, rios com rostos que um dia poderia conhecer.
Houve um tempo em que eu sabia rezar. Um em que recortei de um livro da 6ª série um pequeno conto da Cecília Meireles que até hoje me inspira. Um tempo em que fui filha, esposa, mãe, um tempo em que sou apenas mulher.
Houve tempos luminosos e há um tempo muito duro e nublado, em que aprendo a me cobrar menos e a não pensar no que eu espero de mim. Tempo de não esperar nada. De apenas sentir que a vida corre apesar de mim e comigo, que ela impõe seus limites como a margem limita o rio. Há o tempo do mundo e há o meu tempo: nele só há o presente, turvo, invencível e belo, correnteza que arrasta (sempre sonhando) as muitas que fui e sou.
Em homenagem à crônica juvenil de Cecília Meireles, "A arte de ser feliz"
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